Vamos ver se um dia torno este blog inteiramente dedicado ao mais secreto instrumento musical. (Vamos antes ver se eu assimilo o hábito de escrever nele!)
Hoje eu vou postar trechos de um texto contido no livro "TRABALHANDO A VOZ", organizado por Léslie Piccolotto Ferreira, que achei na biblioteca da ECA-USP. Alias, lá tem livros maravilhosos nessa área, só que são um tanto escassos.
O texto é da professora Regina Maria Freire, e conta um relato incrível sobre umas de suas experiencias no setor de Fonoaudiologia da Santa Casa de Misericódia.
ATRASO DE MUDA VOCAL: FENÔMENO DA PUBERDADE?
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[Entre os problemas de voz], o que mais surpreende o profissional é o chamado "atraso de muda vocal ou muda vocal incompleta".
Enquanto as "disfonias" nos remetem à dicotomia origem orgânica versus funcional, avaliação objetiva versus subjetiva, indicação cirúrgica versus fonoaudiológica, os atrasos de muda vocal primam pela unicidade.
Caracterizada pela manutenção do pradrão vocal infantil contíguo a um exame laringoscópico normal, a muda vocal incompleta é observada usualmente em jovens do sexo masculino.
Nestes, as mudanças hormonais específicas da puberdade manifestam-se na voz de forma mais incisiva, o que somando-se à crise de identidade própria da adolescência contribui para o aparecimento do quadro.
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Os sujeitos que apresentam atraso de muda vocal são indivíduos preocupados com os reflexos da voz em suas relações sociais e profissionais, geralmente entre idades de 15 e 22 anos.
À avaliação, apenas a altura encontra-se alterada, apresentando-se ou sistematicamente mais aguda que o esperado ou então instável, com momentos de agudização alternados com agravamento. O timbre permanece claro e o volume normal. A respiração e a coordenação pneumofonoarticulátória também nao apresentam alterações. Pode-se observar aumento de tensão a nível cervical, gerado pelo esforço para a manutenção da laringe alta.
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O processo terapêutico é rápido e bem-sucedido, em função da inexistência de impedimento orgânico à produção da voz normal. Vários procedimentos terapêuticos podem ser utilizados, mas há um único objetivo a ser atingido: o abaixamento da laringe com o consequente agravamento da voz.
A simplicidade do diagnóstico somada à plasticidade vocal destes jovens não torna a terapia interessante de ser descrita, a menos que o paciente em questão não seja um jovem.
Passo a descrever o processo terapêutico de um caso típico de atraso de muda vocal, cujo interesse maior está na idade do paciente: 56 anos.
Este paciente, que chamarei de R., procurou sem sucesso um tratamento para a voz. Todos os otorrinos que o examinaram, e não foram poucos, ao encontrarem uma laringe normal em paciente de terceira idade, jamais poderiam imaginar que se defrontavem com um atraso de muda vocal, quadro característico da adolescência.
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Embora tenha imediatamente identificado o quadro de que R. era portador, não acreditei inicialmente nas suas possibilidades de desenvolver uma nova voz aos 56 anos de idade!
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As sessões foram realizadas duas vezes por semana e tiveram início no dia 26 de maio e término no dia 1º de setembro, após 14 sessões de terapia.
Detalho a seguir, o trabalho que foi desenvolvido em cada uma das sessões que compuseram o tratamento.
1ª sessão - 26/5 - Mostro a R. que todos temos possibilidade de emitir sons agudos e graves. Emito a vogal /u/ de forma bem agravada e solicito-lhe que faça o mesmo. Aṕos algumas tentativas, consegue a emissão desejada.
2ª sessão - 31/5 - Solicito a emissão das vogais isoladas, sempre com a voz agravada. A seguir trabalhamos com a emissão de vogais combinadas, de vocábulos monossílabos, dissílabos e trissílabos. R. conversa comigo com sua voz habitual, e usa a voz agravada somente quando solicitado. Sua "nova voz" é um tom mais grave que o adequado, não se mantendo até o final da emissão, ou seja, geralmente a sílaba ou a vogal final é emitida na voz habitual.
3ª sessão - 2/6 - Emissão prolongada de vogais isoladas. Emissão de vocábulos. Aparecimento de pigarro decorrente da nova posião das cordas vocais. Introdução do relaxamento específico de Jacobson, com o objetivo não só de diminuir a tensão cervical habitual, como também a tensão introduzida com o uso da "nova voz".
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6ª sessão - 16/6 - Além dos exercícios habituais, introduzo a leitura de textos. Intermediando a leitura, nosso diálogo é feito já com a "nova voz", embora esta ainda seja instável.
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9ª sessão - 28/6 - R. refere que após a sessão de quinta-feira passou a usar somente a "nova voz": na loja, na rua, em casa, com os parentes.
Na 6ª-feira, como sentisse muita dor na laringe e cansaço, voltou a falar com a "antiga voz" o dia todo. À noite usou a "nova voz" para falar com o sobrinho. No sábado, continuou usando a "antiga voz". À tarde, conversou com a sobrinha usando a "nova voz". Sentiu muito cansaço, fez relaxamento e dormiu bem. No domingo, foi à casa do irmão e começou falando com a "voz antiga", passando depois a conversar com a "nova voz". Parou de usá-la durante o almoço e depois conversou com outros familiares com a "nova voz". Todos lhe deram apoio. Misturava as vozes o tempo todo.
Este relato foi todo realizado com R. usando sua "nova voz". Continuamos com os exercícios.
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11ª sessão - 7/7 - R. relata estar usando somente a "nova voz". No entanto, refere outros sintomas paralelos ao uso desta "nova voz". Sente cansaço geral, rouquidão, falta de ar, instabilidade vocal.
Explico-lhe que isto é normal, pois está usando uma nova forma de falar que modifica a sua imagem anterior de indivíduo. É o período de adaptação. Recomendo relaxamento em casa e persistência no uso da "nova voz".
14ª sessão - 1/9 - R. relata estar ótimo. Sua voz é clara e adequada a seu tipo físico. Não apresenta sintomas paralelos. O pigarro desapareceu. Está confiante e seguro de si. Não existe mais uma "voz antiga" e uma "nova voz". Alta.
Meu procedimento ao trabalhar com este caso foi idêntico ao utilizado habitualmente nos quadros de atraso de muda vocal. Resumindo: não utilizei nenhuma manobra manual (tal como manipulação da laringe) para que R. produzisse o tom adequado. Demonstrando-lhe que eu própria podia falar com voz mais grave e solicitando-lhe a imitação da minha voz, obtive a sua emissão. Em seguida foi só expandir a vocalização até chegar ao diálogo.
O maior desafio foi o período de integração da nova voz. Por toda sua vida, R. se conhecia e e ficou conhecido como portador de uma voz agudizada e até feminina. A contribuição espontânea de amigos e familiares que o incentivaram no uso da nova voz e a sua vontade de superar obstáculos permitiram a construção de um novo padrão vocal, cuja influência em sua vida pode ser sentida nas palavras que R. fez questão de deixar gravadas no dia de sua alta:
"3ª -feira, 28 de junho, foi um dia marcante em minha vida, foi o dia da minha alegria e da minha felicidade ao adquirir esta nova voz. Quero deixar gravado para a sra. d. Regina o meu eterno respeito, a minha eterna gratidão, pelo que a sra. fez por mim, com paciência, dedicação e bondade. O meu muito obrigado e meu Deus lhe pague."
Até hoje mantenho contato com R., exemplo vivo da plasticidade vocal do Homem e da impôrtancia da Fonoaudiologia no contexto social.
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